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Associação Nacional Artes Marciais (A.N.A.M.)

Uma reflexão sobre “Karate-do: o meu caminho” de Gichin Funakoshi

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Fonte: Nova Acrópole - Link direto para a página do artigo no site da Associação Nova Acrópole

Autor: Cleto Saldanha, Formador da Nova Acrópole

O Karate talvez seja a mais conhecida Arte Marcial no mundo e, provavelmente, aquela que maior número de praticantes deve ter. Em grande parte deve a sua expansão a uma das grandes figuras do Budo (Artes Marciais de origem japonesa): Gichin Funakoshi

 

“Quando praticares karate pensa que os teus braços e as tuas pernas são como espadas”

 

Nascido e criado na ilha de Okinawa, Funakoshi dedicou-se de corpo e alma ao karate, não se limitando a aprender a sua componente técnica, mas, também, como indica o título, assimilando-o como um caminho de vida. Na sua autobiografia este grande Mestre deixa-nos como legado a profundidade do seu pensamento, bem como exemplos de simplicidade da sua vida, não só como praticante de karate, mas também como ser humano.             

Gichin Funakoshi nasceu no seio de uma família de funcionários de baixo estatuto, mas muito ligados à tradição. Decorria o período da Restauração Meiji, altura em que o Imperador reassumiu o poder tendo relegado o feudalismo dos shogun. A época do samurai, que tinha pautado a vida dos japoneses durante mais de cinco séculos, chegava ao seu término.

O Japão abria-se à influência ocidental e, como consequência, uma série de medidas foram tomadas pelo Governo causando uma profunda transformação na sociedade japonesa da segunda metade do século XIX.

Apontamos algumas:                 

— A abolição das classes sociais tradicionais (samurais, lavradores, artesãos e comerciantes);

— A liberalização do casamento entre as classes sociais;

— A proibição do uso de qualquer tipo de espada (exceção feita às forças policiais e militares);    

— A libertação dos servos;                        

— A proibição da compra e venda de seres humanos;

— A abolição do chonmage (corte de cabelo tradicional masculino).

Esta última reforma teve não só um grande impacto na sociedade de Okinawa, sendo fonte de discórdia, como também afetou diretamente a vida de Funakoshi.

O chonmage não era somente um símbolo de virilidade e maturidade, simbolizava, também, a própria masculinidade, sendo utilizado desde tempos imemoriais. Porém, o regime central, cujo objetivo era abraçar os modos ocidentais, não estava disposto a tolerar quaisquer elementos que fizessem alusão ao passado feudal do Japão, pelo que o chonmage teria de deixar de fazer parte da vida dos japoneses, incluindo os habitantes de Okinawa.

A pequena ilha encontrava-se dividida entre aqueles que defendiam a tradição e os que eram a favor da mudança, sendo que a família de Funakoshi se encontrava, precisamente, entre a facão que defendia os modos tradicionais e, consequentemente, o chonmage. A primeira consequência, para Funakoshi, da postura da sua família foi o facto de não ter ingressado na escola médica, mesmo tendo passado no exame, pois somente acediam à mesma os rapazes que já não possuíam o chonmage. Assim sendo, foi obrigado a frequentar a escola normal, onde travou amizade com alguém que lhe iria abrir as portas para o karate. Esse amigo era filho de Yasutsune Azato, “homem assombroso e um dos maiores karatecas de Okinawa” (1). Para além disso, Azato era um reputado especialista em kendo, equitação, tiro com arco e um brilhante erudito. Foi com este grande mestre que Funakoshi teve as primeiras aulas de karate.  Voltando à questão do chonmage, esta ficou resolvida quando Funakoshi tinha 21 anos. Tendo visto a sua carreira em medicina cortada, decidiu seguir a de professor, pois achava que deste modo poderia ajudar as novas gerações a ultrapassar as profundas mudanças pelas quais o país passava e criar uma ponte entre o antigo e o novo Japão. Porém, para se tornar docente, teria de cortar o cabelo. Não era uma decisão fácil, já que a sua família se opunha terminantemente, mas ele estava decidido a não se deixar limitar por algo que se prendia a um passado que não iria retornar. Talvez ele tivesse sentido que seria mais útil ao mundo como instrutor do que como um acérrimo defensor das tradições antigas. De certa forma, muitas tradições têm o seu tempo e o seu lugar e num mundo em constante mudança, ficar agarrado a formas do passado é estagnar no tempo, não permitindo a renovação das mentalidades nem a sua evolução. Apesar do desagrado manifestado pela família, Funakoshi cortou o cabelo, permitindo-lhe seguir a carreira de docente e que dedicasse 30 anos da sua vida à instrução de várias gerações de japoneses.

Em paralelo, continuou a frequentar as aulas de karate dadas por Azato, tendo de o fazer em segredo e à noite devido ao facto de ainda vigorar a proibição à prática de qualquer tipo de arte marcial, imposta pelo Governo. Assim, após dar as aulas, dirigia-se, pouco antes do anoitecer, para casa do seu mestre, onde passava a noite a praticar, regressando para o seu lar quando o sol começava a raiar.

Azato era extremamente rigoroso no treino e o próprio Funakoshi relata como, dia após dia, semana após semana, repetia o mesmo kata (exercício formal), no pátio da casa do seu mestre, sob o seu atento olhar, vezes sem conta até que este ficasse satisfeito com a perfeição do exercício. Homem de poucas palavras, se o kata não tivesse sido bem executado dizia simplesmente “mais um pouco”, o que, muitas vezes, segundo Funakoshi, implicava “continuar a praticar até começar a suar e estar a ponto de renunciar” (2).

Não havia intenção da parte do instrutor de querer massacrar gratuitamente o aluno, mas de mostrar a este que o percurso era longo e que ainda havia muito para aprender e dominar. Mas apesar do rigor do seu mestre, a dedicação e empenho de Funakoshi era total. O maior elogio que saía dos lábios de Azato, quando a técnica alcançava o grau de execução pretendido, era “muito bem”.

As aulas práticas prosseguiam até às primeiras horas da madrugada, altura em que Azato passava para a parte teórica transmitindo a essência do karate, mas também, como um pai que se preocupa com o seu filho, perguntava sobre a como ia a sua vida profissional.

Azato não foi o único mestre de Funakoshi já que teve, também, a oportunidade de receber aulas de um amigo deste chamado Itosu. Os dois mestres eram exímios praticantes de artes marciais e, como curiosidade, partilhavam o primeiro nome: Yasutsune. Diferiam no seu aspeto físico e em alguns conceitos relacionados com o karate.

Por exemplo, o mestre Azato afirmava que “quando praticares karate pensa que os teus braços e as tuas pernas são como espadas”. Ou seja, os membros deviam ser treinados de forma a seres acutilantes e rápidos nos seus movimentos. Ele próprio era possuidor de uma rapidez de movimento admirável, capaz de responder ao ataque de alguém antes mesmo deste pestanejar. Apesar de ser um especialista na sua arte, não menosprezava o conhecimento do adversário e exemplo disso era o facto de conhecer todos os grandes praticantes de artes marciais da ilha, não somente o seu nome, mas também as suas principais técnicas bem como os pontos fortes e os débeis. Costumava dizer que o conhecimento do inimigo era metade do caminho para a vitória, focando uma frase de Sun Tzu: “O segredo da vitória está em conhecer-te a ti mesmo e ao teu inimigo”. Excelente ensinamento, pois aquele que se conhece a si mesmo sabe quais são as suas qualidades e os seus defeitos, podendo potencializar o primeiro e limitar o espaço do segundo. Conhecer o adversário abre a possibilidade de se poder traçar uma estratégia para que este não possa pôr em jogo os seus pontos fortes. Um bom guerreiro é aquele que dá primazia ao seu intelecto e não à técnica, esta última constitui somente o apoio para a concretização do objetivo.

 

"O corpo devia ser treinado de tal maneira para que pudesse resistir a qualquer tipo de golpe, independentemente da força com que este fosse desferido."

 

Funakoshi descreve Azato como sendo um homem alto, de ombros largos e feições que faziam recordar as de um velho samurai. Os seus interesses iam para além do karaté e do kendo, sendo um sagaz observador de assuntos políticos. Como refere Funakoshi, muito tempo antes da guerra que opôs o Japão à Rússia, em 1904, já o velho mestre tinha afirmado que “uma vez que se construa o caminho-de-ferro transiberiano, a guerra entre o Japão e a Rússia será inevitável”.

Quanto a Itosu, Funakoshi descreve-o como sendo de estatura mediana, possuindo um queixo redondo como um barril de cerveja e um bigode que lhe retirava a imagem de “menino bom”, como o mesmo complementa. Era dono de mãos e braços com um poder extraordinário e o seu corpo estava treinado de tal modo que parecia quase invulnerável.

Algumas histórias curiosas sobre o mestre Itosu são contadas por Funakoshi, como esta, por exemplo: Um dia, quando entrava num restaurante em Naha, um robusto jovem atacou-o por trás dirigindo um soco ao seu flanco. Itosu endureceu os seus músculos abdominais, absorvendo o ataque e agarrando, logo de seguida, com um movimento rápido, a mão do adversário. Calmamente, prosseguiu o seu caminho, sem se voltar para trás, arrastando o atacante atrás de si. Pediu um prato de comida e um copo de vinho, e depois de ter bebido um trago, puxou o jovem para a sua frente e encarou-o cara a cara durante alguns segundos antes de dizer: “Não sei o que tens contra mim, bebamos algo juntos”.

Uma outra história fala-nos de um orgulhoso e provocador professor de karate de Okinawa que tinha por hábito golpear as pessoas solitárias que, à noite, passavam em algumas ruas escuras nas quais ele aguardava escondido.

Um dia a sua temeridade chegou a tal ponto que resolveu tentar o mesmo com o mestre Itosu. Após segui-lo durante algum tempo, sorrateiramente, aproximou-se e dirigiu um golpe às suas costas, o qual não surtiu efeito algum, causando espanto no atacante e provocando o seu desequilíbrio. O agressor sentiu, logo de imediato, o seu punho ser fortemente agarrado e, apesar das tentativas, não se conseguiu libertar sendo arrastado por Itosu. Sentindo-se já um pouco desesperado, o jovem professor pede desculpa ao velho mestre que lhe responde dizendo que o beligerante não deveria realizar aquele tipo de ação com um velho como ele, após o qual a solta, seguindo tranquilamente o seu caminho.

Estas duas narrativas ilustram qual era a tónica de Itosu relativamente ao karate: o corpo devia ser treinado de tal maneira para que pudesse resistir a qualquer tipo de golpe, independentemente da força com que este fosse desferido.

Foram vários os ensinamentos e exemplos de vida que estes homens, verdadeiros mestres, legaram a Funakoshi. Ambos eram humildes, mesmo apesar de serem extremamente bons naquilo que faziam, e não tinham qualquer tipo de ciúme ou inveja em relação a outros mestres, chegando mesmo a recomendar a Funakoshi que fosse praticar com aqueles que eles conheciam bem para aprender as suas melhores técnicas.

Um grande laço de devoção e admiração ligava Funakoshi a aqueles dois grandes homens, a tal ponto que numa altura em que o diretor da escola onde lecionava lhe propôs um cargo mais importante, mas que o obrigava a ir para longe dos seus mestres, ele recusou, pois não estava disposto a permanecer afastado deles. Uma demonstração de devoção digna de nota.

Para além dos seus mestres, outra presença importante na vida de Funakoshi foi a da sua esposa. Ele casou-se tardiamente, para a época, aos vinte anos de idade devido ao facto de viver em relativa pobreza. Mesmo quando se tornou professor primário, o seu salário não era alto e tinha de dar para sustentar não somente a sua esposa, mas, também, os seus pais e avós. Sobreviveram devido à diligência da sua mulher que tecia um tipo de tela local, até altas horas da noite, vendendo posteriormente o produto, mas também devido ao esforço que efetuava na manutenção de uma horta onde cultivava legumes para a família. Apesar de se deitar tarde, levantava-se ao amanhecer e percorria mais de um quilómetro até à horta, sendo por vezes acompanhada pelo seu esposo.

Apesar de todo o esforço efetuado pela esposa, Funakoshi refere que nunca ouviu uma queixa sair da sua boca, e que quando se sentia muito cansada não caía na cama nem pedia a alguém que lhe fizesse uma massagem, preferindo ir para o pátio de sua casa e praticar um kata. Para além de trabalhadora e dedicada, demonstrou também uma grande capacidade de observação e assimilação, pois foi somente vendo Funakoshi treinar e treinando ela própria, ocasionalmente, com ele que obteve “um profundo conhecimento da arte” (3). Chegou mesmo a ensinar os jovens da vizinhança – que Funakoshi tinha aceitado ensinar a pedido destes – quando o mestre chegava mais tarde a casa depois de sair do emprego.

Ficou muito conhecida na vizinhança pelo seu papel mediador nos confrontos que ocorriam, com alguma frequência, entre os vizinhos, após terem bebido excessivamente. Não se coibia de se intrometer no meio da luta se isso fosse necessário, conseguindo utilizar o karate para se defender adequadamente, mas sempre na medida exata e quando fosse necessário.

Era, também, uma pessoa extremamente religiosa, como ficou demonstrado numa ocasião em que Funakoshi foi viver para Tóquio, pois tinha sido convidado a divulgar o karate em vários sítios da cidade, missão que ele assumiu de corpo e alma. Isso iria exigir vários anos fora de Okinawa e o mestre pensou em trazer a família para Tóquio. Porém, esbarrou na recusa da esposa, uma devota budista, em abandonar a ilha, pois o culto aos antepassados era algo extremamente importante na Okinawa da altura e ela não quis trasladar os restos mortais da sua família para um território desconhecido. Em resposta à proposta do marido ela disse que o seu lugar era em Okinawa, atendendo às suas obrigações religiosas e que ele [Funakoshi] se deveria concentrar no seu trabalho. E assim foi.

Funakoshi empenhou-se e dedicou-se de corpo e alma à tarefa de divulgar a arte marcial que ele tinha abraçado. E o destino pareceu recompensar esse esforço abrindo-lhe uma janela de oportunidade.

Tudo começou ainda em Okinawa, quando o comissário escolar da prefeitura de Kogoshima, Shintaro Ogawa de seu nome, se deslocou ao estabelecimento de ensino onde Funakoshi lecionava. Incluído entre muitos outros atos de receção a tão importante figura estava uma demonstração de karate, que o impressionou de tal maneira que, ao regressar ao Japão, fez um relatório bastante detalhado para o Ministro da Educação sobre a arte marcial que teve a oportunidade de observar.

A consequência foi o karate ter-se tornado uma disciplina da Escola Secundária de Daiichi e da Escola Masculina, tendo todo o apoio do Ministério da Educação.

 

"Era necessário ensinar convenientemente a filosofia do karate, para que não fosse tomado como uma arte de guerra, mas antes uma arte marcial que servia antes de tudo para a harmonização do ser humano."

 

Pode dizer-se que foi assim que esta arte marcial abandonou a obscuridade no qual tinha singrado durante vários anos. Com o tempo foi ganhando espaço na sociedade e a sua prática não se cingiu somente às escolas secundárias tendo-se espalhado por institutos juvenis e mesmo escolas primárias, neste último caso como um curso de educação física.

Quando o Almirante Rokurō Yashiro assistiu, em Okinawa, a uma demonstração de karate feita por alunos de Funakoshi, a exposição do karate no Japão continental ganhou novo impulso. O impacto da arte marcial causada no Almirante foi tal que ele ordenou a todos os seus oficiais e homens, os quais tinham vindo com ele no navio-escola que comandava na altura, que se incorporassem nas aulas de karate. Alguns anos mais tarde uma frota da Marinha de Guerra japonesa atracou em Okinawa e todos os seus tripulantes permaneceram durante alguns dias nos dormitórios da escola secundária de Daiichi para poderem ver e praticar esta arte marcial. Foi graças a estes acontecimentos que o karate começou a ser conhecido em Tóquio.

Porém, a grande mudança ocorreu em inícios de 1922, quando se realizou na capital uma exibição de artes marciais tradicionais japonesas. A prefeitura de Okinawa foi convidada e Funakoshi foi o responsável por preparar uma demonstração de karate, a qual obteve um sucesso tremendo junto das pessoas.

Funakoshi pensava regressar de imediato a casa após o final do evento, mas foi demovido pela intervenção de um dos grandes mestres de Budo, Jigorō Kanō, o fundador do Judō e presidente do Kodokan Judo Hall, que lhe solicitou uma conferência sobre o karate e, posteriormente, que ensinasse alguns movimentos básicos aos seus alunos. Foi com grande honra e humildade que Funakoshi aceitou e executou essa tarefa, adiando, assim, a sua partida de Tóquio. Aliás, a sua permanência na cidade iria prolongar-se por vários anos, pois após um segundo pedido de treino percebeu que se quisesse difundir o karate por todo o Japão aquele seria o lugar ideal. Após ter partilhado a ideia com os seus dois mestres, que o incentivaram, Funakoshi conseguiu um local que serviria de dojo, quando não estivesse a ser utilizado, e um pequeno quarto para residir. A vida nos primeiros tempos não foi fácil, pois quase não tinha alunos e o pouco que ganhava mal lhe dava para comer, pelo que realizou os mais diversos trabalhos para ganhar mais algum dinheiro: jardineiro, zelador ou mesmo varredor de habitações.

 

"Funakoshi tinha um sonho: permitir a milhares de pessoas a prática do karate, uma arte marcial que, para ele ia mais além da simples luta, sendo um sistema que permitia fortalecer o corpo e, deste modo, torná-lo mais resistente a qualquer tipo de doenças. Também trabalhava a parte psíquica do ser humano, pois um bom praticante deveria harmonizar-se, mental e emocionalmente."

 

É curiosa uma história que partilha com os leitores. Um dia, quando ele se encontrava a varrer o jardim, chegou um jornalista, que o tendo confundido com o jardineiro da casa, perguntou pelo senhor Funakohsi, o professor de karate. Funakoshi disse para a pessoa aguardar um momento e subiu até à sua habitação para trocar de roupa, descendo novamente e apresentando-se ao repórter dizendo: “Como está? Sou Funakoshi”.

Tal foi a expressão de espanto na cara do jornalista que o velho mestre não mais se esqueceu.

O tempo foi passando e as dificuldades foram-se transformando. Se antes a escassez era um problema, alguns anos mais tarde o excesso passou a constituir o problema. Devido ao aumento do número de alunos, foi necessário construir um dojo. A construção foi conseguida com o apoio de fundos recolhidos pelo “Comité de Nacional de Ajuda ao Karate”, tendo a sua inauguração sido em 1936. Foi com um misto de alegria e tristeza que Funakoshi viveu esse acontecimento. Alegria devido ao momento verdadeiramente importante de ver à sua frente o primeiro dojo de karate em todo o Japão; tristeza porque, como verdadeiro discípulo que era, o seu pensamento voou em direção aos seus dois mestres, Azato e Itosu, que ele gostaria de ter a seu lado naquela hora, mas que já tinham abandonado este mundo. Eis o que Funakoshi escreve na sua autobiografia: “Na minha mente os dois mestres pareciam dizer-me com um sorriso: «Bom trabalho, Funakoshi! Bom trabalho! Mas não cometas o erro de te sentires satisfeito, ainda tens muito trabalho para fazer. Hoje, Funakoshi, é somente o início!»”.

Uma parte do objetivo tinha sido atingido, mas ainda existia muita gente que não conhecia o karate e era preciso fazer chegar esta arte marcial a outras partes do Japão, e quem sabe a outras partes do mundo, também era necessário ensinar convenientemente a filosofia do karate, para que não fosse tomado como uma arte de guerra, mas antes uma arte marcial que servia antes de tudo para a harmonização do ser humano. Aos setenta anos de idade, Funakoshi ainda tinha muito que fazer, coisa que não o abateu pois era possuidor da chamada de Afrodite de Ouro, a juventude interior, a juventude da alma. Aquele que a possuí no seu interior escapa às limitações do corpo físico, que vai decaindo com o passar do tempo.

A alma, porém, não se rege pelos mesmos princípios do corpo, ela permanece jovem sempre que o ser humano sonha e procura concretizar esses sonhos. Funakoshi tinha um sonho: permitir a milhares de pessoas a prática do karate, uma arte marcial que, para ele ia mais além da simples luta, sendo um sistema que permitia fortalecer o corpo e, deste modo, torná-lo mais resistente a qualquer tipo de doenças. Também trabalhava a parte psíquica do ser humano, pois um bom praticante deveria harmonizar-se, mental e emocionalmente. Agora, parecia que tudo estava encarrilado para que o sonho se materializasse, mas novos desafios nasciam e Funakoshi voltou a sua atenção para eles.

Uma das suas primeiras tarefas à qual se lançou foi elaborar um regulamento e um programa de ensino e mais tarde tratou de formalizar os requisitos para a aquisição dos diferentes graus (dan e kyu). Outra tarefa foi a formação de instrutores, pois o número de praticantes crescia rapidamente e Funakoshi não conseguia dar todas as aulas, além disso, permitia que alguns deles pudessem ir para outras partes do Japão, mas afastadas de Tóquio.

Porém, 2ª Guerra Mundial veio mudar o cenário de felicidade de Funakoshi e as sombras da tristeza e do sofrimento foram entrando na sua vida. Vários discípulos seus foram recrutados para combater e muitos faleceram em combate, o que rompia o coração do ancião mestre que, no silêncio do dojo, oferecia uma oração em honra dos falecidos. Para além dessa dor, teve de suportar a destruição do seu dojo por um ataque aéreo. Como ele próprio diz “amigos do karate-dō tinham-no construído com amor e generosidade. Era a cristalização do seu carinho para com essa arte, e a mim parecia-me a coisa mais formosa que tinha feito na minha vida.”.

E o sofrimento não terminara ainda, pois quando ele e a sua esposa tiveram de ser evacuados de Okinawa por causa da guerra, ela ficou doente e acabou por falecer. Funakoshi perdia, assim, a sua companheira de toda a vida, esposa dedicada, que partilhou com ele os momentos difíceis bem como o seu sonho. As pessoas de Oita, localidade onde faleceu, reconheceram a sua grande humanidade e fizeram-lhe um funeral que somente era executado para aqueles que lá morassem. Logo de seguida, Funakoshi partiu para Tóquio onde continuou o seu caminho de mãos dadas com o karate.

Faltava um último passo para que o karate pudesse ganhar uma projeção mundial e isso ocorreu quando teve uma entrevista com um editor americano, interessado na divulgação da arte marcial que nos Estados Unidos estava a ter cada vez mais adeptos e que estava a ser utilizada como meio para se conseguir uma longa vida. Após a guerra, Funakoshi foi convidado a realizar várias demonstrações para os americanos e o karate foi fazendo o seu próprio caminho por terras norte-americanas. Foi o primeiro trampolim para a projeção mundial desta modalidade. Finalmente, a arte marcial que tinha começado por ser praticada clandestinamente na pequena ilha de Okinawa, chegava aos escaparates de todo o mundo. Funakoshi tinha cumprido a sua missão, podia retirar-se satisfeito deste mundo. Imaginamo-lo, no Além, a caminhar humildemente em direção aos seus mestres, chegando perto deles e dizendo-lhes: “Queridos mestres, creio ter atingido o objetivo a que me propus, cumpri o meu dever. Espero agora poder repousar e desfrutar serenamente da vossa companhia, bem como da companhia da minha adorada esposa”.

 

Sayonara, Sensei.

Referências bibliográficas

  1. Funakoshi, Gichin; Karate-do: Mi camino, Dojo Ediciones, 2007, p. 19.
  2. Idem, p. 22.
  3. Idem, p. 57.

Nota da Associação Nacional Artes Marciais - A.N.A.M.

O texto apresentado foi publicado com a expressa autorização da Drª Luísa Graça, da Equipa Relações Públicas da Associação Nova Acrópole de Lisboa. As imagens presentes no artigo original não foram incluídas.

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