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Associação Nacional Artes Marciais (A.N.A.M.)

REI, o cerimonial do treino do Karaté-do

No início era a cortesia

Numa aula de Karaté, tudo começa e termina com a cortesia que caracteriza o espírito desta nobre Arte Marcial. O início da aula é definido pela cerimónia do Rei (em japonês), um ritual que se pode traduzir como sendo uma expressão ou a demonstração de respeito, não só mútuo, mas também em relação ao Mestre (Sensei) e por extensão, a todos os Mestres e estudantes daquela Arte Marcial. Deste modo, todos assumem o estado de espírito necessário para estar em harmonia com o espírito dos grandes Mestres que os precederam no estudo do DO (em japonês, o Caminho ou a Via do estudante). Este primeiro passo é fundamental para compreender o enquadramento espiritual e as razões profundas de tudo o que o Karateka aprenderá no curso da sua vida (o seu DO). 

No Japão, o país de origem do Karaté, esta cerimónia de saudação pode ser executada de duas formas diferentes. A primeira é mais simples e natural, mas nunca informal: é o Ritsu-Rei. A outra forma, mais cerimoniosa e pormenorizada, é o Zarei. Nos dois casos, o ritual está imbuído do espírito de cortesia nipónica.

“O Karaté deve iniciar-se com uma saudação e terminar com saudação” - Shihan Gichin Funakoshi

Nesse sentido, a reverência pelo lugar onde se estuda e pratica uma Arte Marcial, tem o seu reflexo no respeito que cada Karateka tem pelo conhecimento que lhe é transmitido, pelo seu Sensei, pelos outros alunos (Seito) e por fim, mas não por último, por si próprio.

 

A saudação Ritsu-Rei

I

Ritsu-Rei, a saudação que se efetua de pé

Quando o Mestre (Sensei) decide iniciar a sua aula, pronuncia o termo Hajime Mashô, que significa “Vamos começar!”. O aluno mais graduado (Senpai), dá a ordem para os alunos (Seito) alinharem de pé (Segatsu) no tapete (Tatami), e do lado tradicionalmente situado a ocidente (Shimoza). De acordo com a tradição Budista, o local de treino (Hombu-Dojo) deve ser (realmente ou simbolicamente) orientado de acordo com os quatro pontos cardiais por estar ligado ao conceito da influência da energia (Ki) dos elementos naturais sobre os seres vivos e o espírito. A sala onde os Karatekas recebem o conhecimento do Sensei, representa igualmente não só o local ou locais onde é feito o estudo da Arte Marcial, mas é principalmente o centro da sua demanda espiritual. O termo Hombu refere-se a “sede, ou local central”, Do significa “caminho” e Jo significa “um lugar”. O Hombu-Dojo é o “lugar do caminho” ou “lugar da iluminação”. Inspirado nos templos Budistas, o Hombu-Dojo dá corpo aos ensinamentos do fundador do Karate-Do, o Mestre supremo (Shihan) Gichin Funakoshi, nascido em Okinawa a 10 de novembro de 1868 e que faleceu em 26 de abril de 1957.

“O objetivo fundamental da arte do Karaté-Do não consiste na vitória ou na derrota, mas no aperfeiçoamento do caráter de seus praticantes” - Gishin Funakoshi

Os Seito (alunos) dispõem-se por graduações no sentido longitudinal do Hombu-Dojo, ficando o praticante mais novo na classe, (Kohai), numa extremidade do Hombu-Dojo, e o Senpai na outra, numa posição lateral ao Sensei (Shimoseki). Durante o alinhamento, o Senpai poderá instruir os Seito para arranjar o fato (Ki otsuke). O Karateka deve verificar se as calças ficaram atadas, se o casaco (Gi) está bem fechado, e se o cinto (Obi) está amarrado, colocado bem ao centro (Hara) do abdómen (Seika-Tanden), e com as pontas de igual tamanho.

Trata-se não somente de uma de questão de princípio, pois o Gi e o Obi são como a segunda pele do Karateka, e como tal, a sua apresentação deve refletir o empenho do Seito. Os Karatekas devem assumir uma postura correta, de pernas unidas, com o Gi e o Obi devidamente compostos. O Shimoseki, orientado para sul, é um lugar de honra, que somente é possível alcançar pelo Senpai como resultado do esforço e da dedicação demonstrada ao longo de muitos anos de estudo. Se o Sensei convidar para a sua aula um Karateka de outro Hombu-Dojo, este pode colocar-se do lado oposto ao Shimoseki, denominado de Joseki, orientado para sul ou, de acordo com as instruções do Sensei, entre o Senpai e o Seito mais graduado. Os Karatekas ficam assim voltados para o oriente (Kamiza), que como se pode intuir, é na direção do Japão. O Kamiza é também o local onde o Sensei se posiciona, e apenas neste caso, voltado para os Seito e de costas para o Tokonoma, o local no Hombu-Dojo onde existe (realmente ou simbolicamente) uma espécie de altar, em representação daquele que se encontra nos templos Budistas. A presença do Sensei no Kamiza é de uma importância basilar, pois ele é o testemunho dos símbolos do Budo (O Espírito das Artes Marciais). O Sensei está ali em representação do Mestre Fundador (Shihan, o Mestre Gichin Funakoshi, e a quem o Karaté-Do Shotokan deve a sua existência), e dos cinco mandamentos do Hombu-Dojo (Dojo Kun). Os Seito juntam os pés num ângulo de 45 graus (Misubi-Dachi) e colocam os braços ao longo do corpo, com as palmas viradas para dentro. Depois de verificar que todos os Karatekas estão devidamente alinhados e prontos para a aula, o Senpai convida-os a saudar o Sensei (Sensei ni Rei) e depois deste também cumprimentar os Seito, o Sensei pedir-lhes-á para olhar para o lado do Shimozeki (Migi/Hidari mite) e para saudar o Senpai (Senpai ni Rei). Por fim, todos se cumprimentam entre si (Otaiga ni Rei). Os Karatekas fazem uma simples inclinação do tronco, mantendo os olhos fixos no Tatami e num ponto a cerca de dois metros, mas sem dobrar a coluna. A inclinação, que deve ser de aproximadamente trinta graus (Keirei).

Faz-se a partir da zona lombar, com o tronco direito. Neste movimento, as mulheres podem pousar as mãos diante das coxas. Depois de um momento de espera de aproximadamente três segundos, o Karateka regressa à posição inicial. O Seito deve empenhar-se nesta saudação, por ser aquela que é usada regularmente na sua vida de Karateka e que está ligada a um dos princípios basilares do Karate: tudo começa e termina com a cortesia. Esta saudação é também empregue sempre que o Sensei, um Senpai ou um Seito entram ou saem do Hombu-Dojo, quando pisam o Tatami e, principalmente, antes de dirigir a palavra não só ao seu Sensei, mas também a todos os outros Karatekas. Não é um ritual de cortesia exótico, é uma prova de boa educação! A saudação de Ritsu-Rei faz parte de um vocabulário de cortesia e a sua importância pode ser demonstrada pelos seus inúmeros significados. Por exemplo, no final de uma sequência de exercícios que o Sensei apresentou aos seus Seito, faz-se esta saudação, de pé e com os pés juntos (Heisoku-Dachi), para lhe agradecer os conhecimentos transmitidos. De igual modo, quando um Seito convida outro Karateka para treinar, colocando em prática os conhecimentos que procura adquirir, demonstra através do Ritsu-Rei a sua deferência e o agradecimento pela ajuda no seu treino. Todas as pessoas que se encontrarem no Hombu-Dojo e que não participem na aula, inclusive as que foram convidadas para assistir ao treino, devem ficar de pé e em silêncio durante toda a cerimónia, seja no caso do Ritsu-Rei ou no Zarei. A partir deste momento, o Sensei pode finalmente dar início à aula.

II

Zarei, a saudação que se efetua de joelhos

Este ritual é a mais cerimoniosa e complexa das saudações nipónicas no Karate. Após a ordem de Hajime Mashô dada pelo Sensei, os Karatekas ficam em Segatsu no Shimoza, com os pés juntos em Misubi-Dachi, e o tronco sempre direito. O Sensei coloca-se no Kamiza, virado para a frente, para o Tokonoma, e será ele o primeiro a assumir a posição de Zazen, como forma de dar a indicação de que a cerimónia da saudação se iniciou. O Senpai instrui os Seito e os principiantes (Kohai) a se ajoelharem (Seza). Todos os praticantes começam por fletir os joelhos, os quais, devem distar cerca de noventa graus entre si. Pousam, primeiramente, o joelho esquerdo, por ser, no Espírito do Budo, o símbolo de honra, e também porque, historicamente, o Samurai tinha de ter sempre o seu sabre disponível, pronto a intervir. Seguidamente, colocam o joelho direito sobre o Tatami, a uma distância de dois punhos cerrados, entre si, exceto no caso das mulheres Karatekas, que mantém os joelhos unidos. O Seito senta-se sobre as pernas e os pés, os quais devem estar sobrepostos, se possível, com o direito sobre o esquerdo, e os calcanhares a servirem de almofada. Nesta posição, as mãos devem estar pousadas sobre as coxas, de palmas para baixo. O Karateka fica de cócoras, porém, com o tronco direito, numa posição que em japonês se denomina Sonkyo-Sameto e no Karate, de Sezá. O Senpai convida os Karatekas e o Sensei para a meditação (Mokuso). Este compasso de tempo permite-lhes libertar e concentrar a mente, abstrair-se das preocupações exteriores ao Hombu-Dojo e a focarem-se no treino. Depois de um curto período de reflexão, durante a qual o Karateka deve visualizar a sua mente como uma folha em branco na qual irá registar os conhecimentos do Sensei, o Senpai pedirá para terminar a meditação (Mokuso Yame), e para todos fazerem a mais importante das saudações (Shomen ni Rei), por ser o momento em que todos os Karatekas, incluindo o Sensei, demonstram simbolicamente, o seu respeito a uma Entidade Suprema, ao Grande Mestre (Shihan), e também à própria Arte em si. Esta saudação deve ser efetuada colocando a mão esquerda no chão, pelos mesmos motivos anteriormente apresentados, e à frente, entre os joelhos, seguida pela mão direita e ao lado da esquerda. As mãos devem estar com os dedos unidos, e juntas, de modo a formarem um triângulo, cujo vértice deve estar direcionado para a frente, na direção da Kamiza e do Tokonoma. Seguidamente, o Sensei volta-se para os Seito e para os Kohai, o Senpai pede a saudação para o Sensei (Sensei ni Rei), e todos o cumprimentam. Neste caso, como na saudação anterior, o tronco é fletido num ângulo de trinta graus e os olhos fixam-se num ponto no Tatami, a cerca de dois metros. Seguidamente, o Sensei pedir-lhes-á para olhar para o Shimozeki (Migi/Hidari mite) e para saudar o Senpai (Senpai ni Rei). Por fim, todos se cumprimentam entre si (Otaiga ni Rei). Uma vez terminada a cerimónia em Zarei, o Sensei levanta-se, dando indicação ao Senpai, que depois de se levantar, por sua vez pede aos Seito e aos Kohai para se erguerem (Tate Kudassai), por ordem decrescente de graduação (o Kohai ergue-se no final). Por fim, todos se cumprimentam entre si (Otaiga ni Rei). A partir deste momento, o Sensei pode finalmente dar início à aula que continuará até o Sensei considerar que os exercícios estão terminados (Sore Made). No final da aula, os Karatekas seguem os mesmos passos da cerimónia do início do Ritsu-Rei e do Zarei, ou seja, Segatsu em Misubi-Dachi e ficam de pé (Ritsu-Rei) ou em Sezá (Zarei). Seguidamente efetuam as respetivas saudações, mas no primeiro caso (Ritsu-Rei), não se procede à meditação (Mokuso), e apenas se respeita a cerimónia da saudação mútua (Sensei ni Rei, Senpai ni Rei e por fim Otaiga ni Rei). Se o Sensei optar pelo ritual de Zarei, então os Karatekas serão convidados pelo Senpai para se colocarem em Sezá e para meditar (Mokuso), durante o qual os Karatekas devem interiorizar o conhecimento partilhado pelo Sensei ou pelo menos, revisitar com emoção os passos que deram no seu DO pessoal. O Senpai pedirá para terminar a meditação (Mokuso Yame) e anunciará o Dojo Kun, o conjunto de cinco mandamentos que são a base da ética do Karaté-do, e que todos repetirão com a voz do seu próprio coração:

Dojo Kun

«Hitotsu – Jin kaku kansei ni tsuto muru koto» - (Carácter)

«Hitotsu – Makoto no michi yo ma muru koto» - (Sinceridade)

«Hitotsu – Doryoko no seishin o yashinau koto» - (Esforço)

«Hitotsu – Rei gyo o monzuru koto» - (Etiqueta)

«Hitotsu – Keki no yo o imashi muru koto» - (Autocontrolo)

Depois de todos fazerem a mais importante das saudações (Shomen ni Rei), o Sensei volta-se para os Seito e para os Kohai, o Senpai pede novamente a saudação para o Sensei (Sensei ni Rei), e todos o cumprimentam. O Sensei pedir-lhes-á para olhar para o lado do Shimozeki (Migi/Hidari mite) e para saudar o Senpai (Senpai ni Rei). O Sensei ergue-se, dando indicação ao Senpai, que depois de se levantar, por sua vez pede aos alunos para se colocarem de pé (Tate Kudassai), por ordem decrescente de graduação (o Kohai ergue-se no final). Por fim, todos se cumprimentam entre si (Otaiga ni Rei).

III

Kara (Mão vazia) Te (Arte) Do (Via)

E assim termina uma aula de Karaté, enquadrada e enriquecida por uma cerimónia imbuída de uma simbologia cujo conteúdo é uma fonte inesgotável de conhecimento.

"No Karaté, o que o aluno aprende é a soma do conhecimento do Mestre, elevado à potência da sua paixão"

A saudação faz parte de uma cerimónia muito importante e deve ser feita com calma e seriedade, sem pressas. É sempre acompanhada pela palavra japonesa OSS (exceto se o treino decorrer sem a presença do Sensei) e é dirigida, simbolicamente, a uma entidade e a um conceito que não se encontra fisicamente presente no Hombu-Dojo.

A importância desta palavra na cultura japonesa e, em particular no Karaté, exige que seja usada apenas naquelas circunstâncias em que pretendemos expressar o nosso profundo respeito, a simpatia e a confiança no nosso interlocutor, em particular relativamente ao nosso Sensei.

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